Kindred - Morte

120 7 2
                                    


Essa história começa como a maior parte delas termina.

Eu estava na praia mais branca de todas. Talvez o cascalho tivesse se transformado em algodão sem que eu reparasse. Ela não era tão fofa sob os pés, mas a vista era encantadora.

Por séculos, meus parentes depositaram cinzas em sacos de linho e caixas de pedra aqui. Trocavam comida e mercadorias com o povo da fronteira. Meu povo nunca praticou a fé. Não precisávamos acreditar em nada.

Encontrávamos sorte em um trevo de cinco folhas tanto quanto nas mamas de uma vaca. Musgo nunca antecipou dias chuvosos. E a quantidade de cores em um arco-íris nunca importou.

Desde o início dos tempos, vivíamos sem nos dar conta do que viria em seguida, então não nos importávamos com passado, com futuro, nem mesmo com as mágoas que deixávamos. Poucas lições foram aprendidas. No máximo, nos empenhamos em fazer o prazer durar e em garantir comida o suficiente para o inverno. E se não era uma pergunta comum.

Mas depois que isso aconteceu tudo mudou.

Em algum lugar à distância, uma forma apareceu como um gênio de uma lâmpada. Entre duas estradas, uma curta e uma comprida. Surgiram cabeça e ombro, dorso, e os membros em seguida. Nenhuma história de gênio soava como aquilo.

A criatura tinha cascos sob as patas e pêlo branco desgrenhado. Sua sombra imitava um véu tremulante, que se desfazia no chão como tinta em água. A sombra tinha olhos lupinos, sem garras à vista. Não uma, mas duas figuras se aproximavam.

Eles carregavam um ar lúgubre, mas soavam mais vivos do que eu. O chão sob as patas afundava, e sua presença crescia a cada passo.

O ar escapou dos meus pulmões. O coração parecia saltar do peito. Eles me encararam pelos minutos mais intensos da minha vida.


— Quem é este, caro Lobo? — disse uma voz doce.

— Precisamos descobrir, Ovelha. — respondeu grunhindo — Bem devagar.

— A menos — a Ovelha se virou — que ele tenha outra idéia. Diga, homenzinho, o que lhe ocorre nesse exato momento?

Quando inclinou a cabeça sobre o ombro, me senti inútil como um boneco de pinho. Gostaria de ter me movido. Talvez eu devesse ter tentado.

— Vou arrancar sua mão... talvez consiga fazê-lo gritar. — salivou o Lobo.

Eu guinchei como um rato, quase inaudível, e então respondi gaguejando.

— Essa terra me é familiar, mas não reconheço seu horizonte. Eu toquei essa areia com minhas próprias mãos e não consigo mais senti-la sob meus pés. Já me trouxeram aqui, mas não me recordo. — eu os encarei por alguns segundos. — E tampouco reconheço a criatura diante de mim, você... Vocês?

— Nós — disse a criatura branca — somos como barqueiros. Aqueles que executam sua transição.

— Transição? Para onde?

— Onde correr e perseguir não faz mais sentido. — ele parecia cabisbaixo se é que isso era possível.

Eu não tive resposta além de esperar.

— Como Caçadores Eternos, perguntamos: qual é a sua decisão?

— É injusto! — as palavras escaparam da minha boca — É como assinar um contrato sem ler as entrelinhas. Eu precisaria de pelo menos uma vida inteira para decidir.

A Ovelha e o Lobo se entreolharam como se eu não estivesse ali.

— O tempo usado pelos vivos é um desperdício. Então, viemos para... agilizar o processo. O seu tempo, e o de todos vocês, precisa acabar.

— Você não fará mais nada. Sua vida chegou ao fim, e agora outra tomará o seu lugar — o Lobo murmurou.

— A vida tem um fim... — meus olhos lacrimejaram.

— Nossa marca indica aqueles que virão em seguida, e você é o próximo. Pense bem antes de dar o próximo passo, pois será o último.

Assim que terminou, pude ver os dois trajetos com mais clareza: um longo e tortuoso a perder de vista, e outro do tamanho de uma poça, redondo e preciso.

Eu ponderei. À minha frente havia dois seres místicos, dois caminhos decisivos. Ambos estavam apressados, um deles era calmo e o outro, agitado.

— Escolha seu caminho! — trovejou o Lobo com as gengivas levantadas e os dentes à mostra.

O rugido me arrepiou da coluna até a nuca, e o sangue fluiu da cabeça às pernas. Eu estava pronto para fugir, mas eu não pude.

Eu escolhi permanecer imóvel, paralisado na eternidade.

Cinco segundos se tornaram cinco minutos, que se tornaram dias, e se converteram em tempo o suficiente para que recordasse todos os arrependimentos em vida, queimando e se expondo como o Sol: cada vez mais alto, cada vez mais visível.

Eu estava condenado, mas talvez conseguisse impedir que outros fossem surpreendidos da mesma maneira.

Então, para ultrapassar o tecido que separa o limbo da realidade, reuni todas as minhas forças e esclareci minha mente. E eu consegui. Conversei com eles em uma noite chuvosa através de um monge, não mais velho do que eu mesmo era.

Eu o alertei sobre eles, O Lobo e A Ovelha. Primeiro, que poderia ter uma morte lenta e dolorosa se estivesse em conflito. Segundo, que poderia evitar a agonia se estivesse em paz. Terceiro, que eu precisaria de ajuda para fazer minha passagem.

Mas isto não funcionou. Ele confundiu minhas palavras e se confundiu através das histórias, fazendo com que seu povo rejeitasse a ideia de que um dia tudo teria um fim.


— E se tomarmos a escolha por eles? — ela abaixou a cabeça pensativa — Avaliarmos somente seus instintos.

— E se eles fugirem todas as vezes?

— Então, lhe servirão de grande banquete.


Uma pessoa após a outra Eles caçaram, incansáveis, implacáveis. Os que vieram depois deram valor ao tempo, abraçaram e beijaram com ternura. Os esperançosos rezaram ao que chamaram de deuses. Já os desesperados saquearam e reproduziram a morte como a entenderam. Apesar das minhas tentativas, a maioria se rendeu à ferocidade do Lobo.

Até hoje, o limbo consome minha consciência, que espera outra chance de dizer a eles que destino algum poderia ser tão doloroso e assustador quanto uma vida mal vivida.

MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora