Aniquilação

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Eu nunca fui muito bom em muitas coisas na minha vida. Pra dizer a verdade eu sempre tentei me provar de alguma forma. Não sei dizer ao certo pra quem. Pra mim mesmo? É, talvez, embora essa solução me pareça irremediavelmente simplista diante do dilema em que me encontro agora. O rifle de caça pesava no meu colo enquanto os últimos raios de sol tingiam tudo ao meu redor de dourado. Eu não vou durar muito mais tempo com a perna ruim desse jeito. Quando dizem que sua vida passa diante dos seus olhos quando você está morrendo, será que é isso que que querem dizer?

Do alto da torre eu tinha uma visão estratégica e privilegiada das redondezas. Não que isso fosse grande coisa. A distorção fazia com que o ambiente mais seguro se tornasse violento, e vice-versa. Com a mão livre alcancei o maço de cigarros no bolso do que sobrou de Carlos. Não muito mais que o tronco e um dos braços. Anos atrás aquela cena teria me feito sentir aterrorizado, mas aquela era a coisa menos perturbadora que eu havia testemunhado nos últimos tempos.

Acendi o cigarro a dificuldade esperada de alguém que só pode usar uma das mãos. Não podia tirar meu dedo do gatilho do rifle. A qualquer momento uma daquelas coisas malditas podia entrar pela porta da torre e pronto, eu estaria como meu amigo Carlos em questão de segundos. Traguei fundo e a fumaça me trouxe mais memórias.

Lembrei dos troféus que eu tinha em casa. Troféus. Todas as vezes que eu fui premiado por alguma coisa eu tenho certeza que foi por pena ou piedade. É simplesmente assim. Não faz sentido na minha cabeça que alguém me premie por alguma coisa, afinal eu nunca passei de uma pessoa medíocre na maioria das coisas que eu tentei fazer. Não foram poucas as pessoas que fizeram questão de me lembrar isso. "Melhor jogador em campo do futebol". "Aluno destaque do Judô". "Programador Medalha de Ouro". Ilusões que fiz questão de deixar pra trás no segundo que alcancei. Eram um atestado de piedade. Você é tão ruim que te demos isso de consolo. Não faz sentido pra você? Pois pra mim faz. Tanto que larguei o judô, nunca mais joguei futebol e tomei pânico por programação. O que eu faço hoje? Bom, hoje não né, afinal não sobrou muita coisa do que você deve conhecer como humanidade.

Ouvi dizer que ainda existe uma colônia de refugiados em algum lugar no interior de Minas Gerais - não é mesmo Carlos? Se ele pudesse me responderia. Eu acho. Carlos nunca foi de falar muito, mas depois da distorção, ele foi o único que eu tinha pra conversar. Dei outro trago no cigarro, brincando com ele entre os nós dos dedos da minha mão. A última coisa que eu fiz antes de tudo acabar foi ser um técnico meia-boca de som. Isso até eu ser demitido e me entregar completamente às garrafas de uísque. Vício caro que eu não tinha condições de sustentar. Foi assim que eu comecei a perder tudo. Mas eles vieram antes que eu pudesse dar cabo de tudo.

Um ruído metálico alto, abafado e deturpado reverberou pela estrutura de aço da torre. Longo e descontínuo, aquele barulho me lembrava uma espécie de canto de baleia profanado, ou algo do tipo. Sei lá. Nunca fui muito bom em biologia. Traguei o cigarro de novo sabendo que agora não me restava muito tempo. Era engraçado pensar que eu estava bêbado demais para perceber o som que eles fizeram na primeira onda. O som que dizimou oitenta porcento da população mundial. Um técnico de som incapaz de perceber um estrondo perturbador desses. Que piada.

Agora eu podia ouvir. Alto e claro. É assustador pensar que eles não precisaram de muito mais do que alguns segundos pra aniquilar a maior parte de nós. Até hoje eu não entendo bem. Pra dizer a verdade, acho que nenhum humano jamais vai entender. Talvez seja uma daquelas coisas que ninguém esteja destinado a fazê-lo. Aliás, entender pra que mesmo? Não é como se isso fosse mudar tudo o que aconteceu.

O laranja foi sendo substituído gradualmente por um tom arroxeado. Tentei me apoiar na perna boa pra levantar, mas logo desisti. É. Acho que é assim que as coisas vão terminar pra mim. Três anos depois da distorção, sozinho numa torre com metade de um cadáver fumando um cigarro. Eu daria tudo por uma garrafa de uísque agora, mas bebi na noite anterior com Carlos quando achamos que estaríamos seguros nessa base militar abandonada. Eu suponho que foi abandonada por uma razão né? Sei lá.

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