Vai Passar 1

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Tom saiu do esconderijo acompanhado pela advogada e pelo lobisomem. Andaram um pouco até a saída do parque, onde Cristina havia estacionado o carro. Era um utilitário relativamente novo, mas já com a lataria arranhada, sinal de uso constante. Depois de destravar as portas e desligar o alarme, ela jogou a bolsa e sentou no banco de trás. Zé fez um gesto com a cabeça e sentou no banco do motorista, fazendo com que Tom ficasse no banco do carona.

- Ainda não sei se foi uma boa ideia deixar aqueles dois juntos. – Zé comentou, encarando Cristina pelo retrovisor. A advogada simplesmente deu de ombros enquanto remexia a bolsa.

- Você sabe, tão bem quanto eu, que é impossível se meter entre duas pessoas que se gostam e não se entendem. Além de impossível, é pouco aconselhável – Ela tirou uma pequena nécessaire e começou a se maquiar olhando em um pequeno espelho de bolso. – A carta está com você, certo? Tião e Eva estarão lá esperando pelo nosso contato. Leve tudo para o nosso esconderijo em Itaipu.

Zé desviou rapidamente os olhos do transito e a olhou pelo retrovisor, surpreso.

- Ué, vamos nos mudar?

Ela colocou os óculos escuros e guardou.

- Estou com um pressentimento ruim... Andrew é uma ave de mau agouro, Zé, você mesmo já me disse isso. A chegada dele ao esconderijo principal pode ter comprometido toda a nossa segurança – Ela respirou fundo e o encarou pelo espelho. – E o telefonema de Tião me deixou alarmada. Tem algo acontecendo e é bom ficarmos a postos. A carta?

- Comigo. – Ele bateu no bolso da camisa com uma das mãos, mantendo a outra no volante. – Amor, você tem certeza de que é sensato você estar sozinha com a Ordem toda em alerta?

O sorriso dela foi irônico e carinhoso ao mesmo tempo.

- Desde que nos conhecemos, nada do que eu faço é muito sensato, lobinho.

Já estavam no centro da cidade, a dois quarteirões do fórum. O carro parou em um sinal vermelho.

- Bem, vou aproveitar e saltar aqui. O fórum deve estar sendo vigiado e é melhor não sermos vistos juntos. Vocês dois, tomem cuidado. E Zé, controle-se, amor.

Tom remexeu-se, inquieto. Sentia-se como se tivesse sido deixado de lado pelos dois, como se invadisse um momento muito íntimo, mesmo que o máximo de pele que se tocava fosse a ponta dos dedos enquanto Cris saía do carro.

Assim que a porta do carro bateu, a postura de Zé mudou. O seu olhar ficou mais agressivo e suas feições se fecharam.

- Não esqueça de que não pode falar que eu estou no carro com você. Eles só falam com a Cris.

- Por que isso? – Tom olhava as ruas do centro passando, preocupado em ser visto pelos neotemplarios.

Por um momento, achou que o lobisomem fosse rosnar para ele, mas Zé controlou-se.

- A aldeia de pescadores teve um incidente com lobisomens alguns anos atrás. O assunto foi resolvido, mas o trauma, digamos assim, ficou. Então, não diga que está comigo, não fale sobre mim e não toque no assunto 'lobisomem'. Assim, você sairá vivo da aldeia.

Tom arregalou os olhos.

- Quem são esses pescadores?

Zé mostrou os dentes, num sorriso quase ameaçador.

- Você vai ver.

*


Ele teve que andar quase oitocentos metros desde o lugar em que Zé parou o carro até a aldeia de pescadores. Era um amontoado de vinte casebres até bem conservados, mas muito simples, ao redor de uma praça improvisada. Conforme ele se aproximava, duas pessoas saíram de um dos casebres enquanto os demais se escondiam.

- Quem é você? – O homem que o interpelou já era um senhor, cabelos crespos brancos e pele encarquilhada, queimada pelo sol. Ao seu lado, uma mulher com seus quarenta anos o encarava com olhos totalmente brancos e cegos.

- Vim a mando da Cristina. – Ele tirou a carta do bolso e a entregou. O velho leu com atenção, balançando a cabeça.

- Certo, certo... Bem, temos o que ela pediu sim, vou mandar separar... Mas temos um outro problema. Preciso que você venha comigo. – Virou de costas sem esperar resposta. A sua acompanhante ficou por mais alguns segundos, encarando Tom que não sabia o que fazer.

- Vá chamar o lobo. Estamos naquela casa – Apontou para um dos casebres e se virou, seguindo o velho e deixando Tom sozinho na praça.

*


O interior da casa era escuro e úmido, cheirando a peixe. Tião, o velho pescador, e Eva, sua companheira, estavam no centro do único aposento, esperando por eles. Atrás, encostado numa das laterais, um vulto esperava, sentado em uma cadeira. Os dois entraram de cabeça baixa. Zé foi o primeiro a quebrar o silêncio.

- Tião, Eva, boa tarde. Obrigado por me receber na casa de vocês.

Havia uma formalidade estranha nas suas palavras e Tom hesitou, pensando se deveria dizer algo. Mas não teve tempo de elaborar nada, pois Tião respondeu ao cumprimento quase que imediatamente.

- Uma situação estranha pede alianças estranhas, lobo. Na semana passada, um visitante apareceu na nossa porta. O que ele nos contou é alarmante, nos reunimos e decidimos que era melhor contar com o apoio de vocês da Rebelião.

O tom de sua voz era seco e direto, como se não gostasse de ter contato com Zé. Pela expressão contrita no rosto dele, Tom pode perceber que havia motivos justos para aquela relutância.

- Vocês sabem que podem contar conosco, Tião.

A gargalhada de Eva não tinha nenhum humor.

- Sim, sabemos. Principalmente com você e com os seus... Mas não viemos discutir lealdade ou apoio. – A amargura na voz dela deixou Tom ainda mais curioso com tudo o que estava acontecendo. O vulto que estava semi-escondido nas sombras a interrompeu.

- Eva, por favor. Sejamos mais diretos porque perdemos tempo demais já. – Ele se levantou e foi na direção do centro onde havia um pouco mais de luminosidade. Era alto, muito alto. Tom calculava que tinha mais de dois metros. O rosto era marcado por uma grande cicatriz que destacava os olhos azuis claros debaixo de sobrancelhas grisalhas e finas.

Zé se colocou na defensiva.

- E quem é você?

- Posso ser um aliado, até um amigo. Estou no mundo há muito tempo e tenho acompanhado as mudanças da raça de vocês... E chegou a hora em que se tornaram uma ameaça grande demais para serem ignorados.

Tom estava confuso e Zé, pela expressão no seu rosto, também. O lobisomem rosnou.

- Você não respondeu a minha pergunta.

- Talvez seja por ter feito a pergunta errada. Você quer saber o que sou eu...

E com um gesto desfez o feitiço que o ocultava.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Sep 29, 2016 ⏰

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Fé cega, faca amoladaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora