Caput Secundum (Cipriano)

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Cipriano

Era uma situação estranha estar ali com ela quando o máximo de interação que eu havia tido com outras pessoas era aquele suficiente para afastá-las de mim com olhares desconfiados, como se eu fosse alguma espécie de maluco que havia fugido do hospício. E eu estava surpreso por ela não ter feito nem menção de que correria de mim. Claro que ela ainda estava receosa com toda aquela generosidade de minha parte e por vezes eu percebia que ela me olhava em dúvida, como se apenas com uma observação analítica ela conseguiria analisar minha índole, e em nenhum momento eu lhe neguei isso, muito pelo contrário, eu deixei que ela o fizesse, pois queria que ela percebesse que, por mais esquisito que parecesse, eu queria ajudá-la, queria que aquela dor maluca que ela sentia se dissipasse.

Céus! Só de imaginar cem anos de dor acumulada eu sentia em meu corpo humano recém adquirido uma tremenda exaustão... É, exaustão. Não conseguia imaginar uma palavra melhor para definir. Não me julgava forte o suficiente para isso e eu provavelmente teria desistido e pedido clemência nos dois primeiros minutos. E naquela fração de segundo, enquanto esses pensamentos passavam por minha mente, percebi que além de notar a beleza genuína de Genevieve Cortese eu a admirava também. De uma maneira que eu nunca havia enxergado alguém antes, o que talvez possa significar alguma coisa, se levarmos em conta de onde eu vim e com quem eu "trabalhava".

E a cada segundo que eu passava com ela ali ao meu lado eu me sentia mais tolo, pateta... um tremendo imbecil. "Anjos caídos sentem fome?" Vamos lá, que tipo de pergunta havia sido aquela? Por Deus! Não me admirava que ela não tivesse conseguido segurar o riso. Eu riria de mim mesmo se a situação não fosse tão trágica. Só me restava engolir em seco e respirar fundo para tentar me conter e dizer a menor quantidade possível de coisas estúpidas.

Genevieve me olhava com atenção enquanto eu explicava para que servia cada uma das coisas que ela usaria no banho, desviando apenas para olhar o shampoo e o sabonete líquido, e quando ela assentiu, repetindo minha frase para mostrar que havia entendido, senti um sorriso se formar em meus lábios. Por um momento, eu me vi refletido nela e desejei que alguém tivesse me ajudado assim como eu estava ali por ela.

Eu precisava parar de tentar entender o porquê eu havia sido dispensado para a terra como algo descartável e inútil.

Me virei para ir buscar a toalha e roupas limpas para Gen e me surpreendi ao sentir seu toque em meu braço, ficando um tanto embasbacado quando ouvi seu pedido.

Vamos lá, Andrew, ela só lhe pediu para rasgar a túnica, o que há de problema nisso?

Afastei os cabelos dela para o lado, para evitar que puxasse algum dos fios e, segurando com relativa força, puxei o tecido nas duas direções, sentindo minhas mãos ridiculamente trêmulas e procurando não manter meus olhos em sua pele, que ia sendo exposta a cada puxão que eu dava. O ferimento nas costas dela fez com que novamente eu sentisse um incômodo em minhas asas e eu desejava nunca passar por aquilo. Eu não fazia ideia da dor que ela sentia e da falta que as asas deveriam fazer a ela e também não queria ter nem um vislumbre disso.

Engoli um tanto em seco quando cheguei à base de suas costas e ela segurou em minhas mãos, num pedido para que eu parasse, então me voltei imediatamente para o lado oposto ao seu porque eu sabia que ela iria se despir naquele exato momento. Ouvi o barulho da água, indicando que ela havia entrado na banheira e uma baixa exclamação ecoou pelo banheiro, demonstrando o quanto ela deveria ter ansiado por aquilo. Eu conhecia aquela sensação muito bem.

Antes que eu pudesse dar o primeiro passo para a saída do banheiro, a fim de finalmente ir atrás das coisas que ela precisava, sua voz voltou a ecoar, dessa vez soando com receio do que eu pudesse lhe responder. Apenas assenti, concordando com a ideia de ela me fazer mais um pedido e automaticamente virei em sua direção, a encarando com cuidado e imaginando que ela devia ser um tanto maluca, porque ninguém em sã consciência pediria para ser costurado por mim. Eu era o anjo atrapalhado, que se atolava na lama e se afogava na banheira, que tipo de desastre poderia acontecer comigo e uma agulha em minha mão?

Mortiferum ParadisoWhere stories live. Discover now