Pesadelos contínuos

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Pesadelos tem, entre os sonhos, a essência mais forte. O onírico sabia disso, pois fora uma das recomendações do Chefe. Não perder tempo com sonhos plácidos, tranquilos, e procurar direto os com sensações mais fortes. Além dos pesadelos, claro, isso envolveria sonhos eróticos. Porém, o Ladrão-de-Sonhos sentia-se desconfortável em sonhos envolvendo sexo e preferia invadir pesadelos.

Claro que essa preferência tinha seu preço e ele estava pagando-o naquele momento, enquanto corria por vielas escuras do sonho que se desmanchava. Ele tinha exagerado na dose ao instigar o pesadelo, ao força-lo a aumentar a dose de horror. O sonhador estava tendo um ataque cardíaco, o que o deixava correndo o risco de ficar preso na consciência dele até que esta deixasse de existir. O que iria matá-lo junto com o sonhador.

Não podia correr esse risco. Não ia morrer assim, sem nem lembrar quem era direito, preso em um pesadelo banal de incêndio em um apartamento no 15º andar. Reuniu a coragem que lhe sobrou e se jogou pela janela, sem sequer se dar ao trabalho de abri-la. A falsa gravidade do sonho em decomposição não o fez cair tão rápido quanto deveria, dando-lhe tempo para abrir um portal de saída emergencial. Normalmente, ele planejaria sua saída depois de recolher a essência, e saíria no vazio do plano onírico. Não poderia fazer assim desta vez, já que o sonho entraria em colapso antes do portal se abrir.

Teria que ser na Sorte – e da última vez em que a encontrara, ela não parecia ser muito fã dele.

A faixa estreita rasgou-se na irrealidade ao redor dele. O Ladrão-de-Sonhos caiu de cabeça, desejando ardentemente ir parar em um plano conhecido.

*

Acordou sentindo-se deslocado. Como ainda existia, sabia que seu plano tinha funcionado. Porém, estava tão perdido que sequer sabia em que plano de existência estava. Por comparação, sabia que não estava no plano dos sonhos, pois conhecia a consistência de lá. Poderia ser qualquer outro, então.

Levantou-se, sentindo uma leve tontura. Olhou ao redor e estava em um lugar escuro, cercado de árvores, mas podia ver luzes mais a frente e foi para lá que se dirigiu, com cuidado. O grupo de luzes revelou-se uma praça bem iluminada, onde grupos de estranhas criaturas conversavam. Reconheceu a maioria delas como consolidações das imagens que os humanos criavam para seres extraplanares, como vampiros, alienígenas, lobisomens, fantasmas... E misturados a eles, haviam versões de heróis literários, dos filmes e da tevê. Era como se fosse um lugar entre planos, desconhecido para ele.

Bom, precisaria tomar cuidado e procurar um Nexo onde poderia voltar para o plano dos sonhos. Afastou-se do grupo, notando que não chamava tanto a atenção com sua pele vermelha coberta de escamas e sua roupa negra cobrindo quase todo o corpo, deixando apenas o rosto de fora. Alguns dos estranhos seres simplesmente passavam por ele e balançavam a cabeça, como se o admirassem.

Tentou ainda mais passar despercebido quando ouviu vozes se elevando zangadas.

– Me deixem em paz – era uma voz suave, feminina, que parecia assustada e nervosa.

– E por que a gente faria isso, gracinha? Você se veste assim, quase sem roupa... não me parece que quer ser deixada em paz, não é, gente? – outras duas vozes masculinas, quase tão rudes quanto a que ameaçara fizeram sons grosseiros de concordância.

O Ladrão-de-Sonhos se aproximou das vozes, apressado, quase correndo. Era um grupo daqueles seres estranhos, um vestido como um falso vampiro, outro de soldado morto-vivo e um terceiro de lobisomem, rodeando uma jovem fada. Tinha tido pouca experiência com seres féericos, tirando o Chefe para o qual trabalhava, mas não era difícil reconhecer alguém do belo povo. Ela tinha as orelhas compridas e pontudas, o rosto delicado e o corpo esguio. Estava vestida com a paródia que os humanos costumavam fazer das roupas féericas e sua pele morena contrastava com o louro artificial do seu cabelo. Não importava. Mesmo se vestindo daquele jeito estranho, era uma fada, uma criatura que ficava fragilizada em alguns planos de existência.

Quando viu o 'vampiro' empunhar uma faca, perdeu a hesitação. Ferro era mortal para fadas.

– Ei, será que estou atrapalhando alguma coisa?

– Sai daqui, xará, que nosso problema não é com você.

– Moço, me ajuda, me salva, moço – ela estava com as costas apoiadas em um muro, lágrimas correndo dos olhos castanhos. O Ladrão-de-Sonhos estranhou aquele tratamento, pois os féericos geralmente temiam os oníricos, mas sabia que ela estava passando por um momento de tensão, o que explicaria aquela intimidade.

– Eu vou lhe ajudar, fique tranquila – não citou o seu título na Corte Seelie, pois naqueles estranhos trajes humanos era impossível saber se era da Alta ou da Baixa. E tendo em vista a intimidade com que ela lhe tratara, não iria se importar com aquele pequeno deslize na etiqueta. Virou-se para seus oponentes e os analisou.

Eles estavam ainda de caras fechadas, estranhando a sua intromissão. O vampiro era mais corpulento do que deveria ser, o lobisomem bem mais mirrado do que o normal para a sua espécie e o morto-vivo tinha a pele de tons errados.

– Que criaturas estranhas vocês são. Também estão perdidos?

– Perdido tá você, xará, por ter se metido com as pessoas erradas. Num é porque você está usando essa maquiagem cheia de efeitos especiais que é mais forte que a gente.

Maquiagem? O Ladrão-de-Sonhos ergueu uma sobrancelha, surpreso com a estranha escolha de palavras. O que seria aquilo? Aquele era um lugar muito estranho. Mas quando o lobisomem se aproximou ainda mais da pequena fada, que deu um ligeiro soluço amedrontado, decidiu que não tinha mais como conversar.

Em um salto, usou as garras da mão direita para decepar o braço do vampiro que segurava a faca de ferro, a maior ameaça para a criatura féerica. Sabia que ele iria se regenerar em poucos minutos, mas isso lhe daria tempo para abrir um buraco no peito do lobisomem e arrancar a cabeça do morto-vivo, pelo qual não teria a menor consideração.

Tudo demorou menos de um minuto. Ele sequer estava respirando mais rápido quando terminou, sentindo-se estranhamente satisfeito pelo que fizera. Talvez a fada fosse alguém importante, e pudesse interferir na sua busca por sua história. Talvez tivesse poder para arrancar a sua história das garras do Chefe, e finalmente ele poderia parar de vagar entre sonhos.

Estava pronto para uma segunda leva de ataque, com os oponentes mais combalidos, ou mesmo que eles fugissem ao ver que estavam em inferioridade numérica. Não esperava o que viu, o sangue correndo vermelho dos ferimentos, dois dos seus oponentes imóveis no chão e o terceiro segurava o toco do braço que não existia mais. Havia algo de muito errado ali.

A fada agora berrava, um som estridente e muito pouco féerico.

– Seu monstro! O que você fez! Quem é você? Vou chamar a polícia! Socorro! Socorro!

A palavra 'polícia' despertou o Ladrão-de-Sonhos. Alguns pesadelos que extraíra eram relativos a policiais e suas prisões, aos terríveis e brutais tratamentos que aqueles agentes da lei impingiam às pessoas. Se aquele ser estava gritando pelo auxílio da polícia, era uma humana... E ele tinha acabado de matar três humanos. Por mais errados que eles estivessem ao ameaçar outro ser, o Ladrão-de-Sonhos não era juiz, nem executor para exterminá-los daquele jeito.

Sem contar que estava no plano material, o que lhe daria no máximo duas horas de subsistência até ser consumido pela falta de energia mística daquele lugar. Precisava sair dali, urgente. A gritaria incessante da criatura vestida de fada não estava ajudando.

Mas poderia ajudar.

– Me desculpe pelo que vou fazer – agarrou-a pelos ombros e a fez se levantar. Deu um leve beijo nos lábios, o suficiente para que as suas toxinas passassem para ela. Na mesma hora, a humana caiu desacordada, sem emitir nenhum som. Com cuidado, o Ladrão-de-Sonhos a pousou no chão e colocou os seus polegares sobre os olhos fechados. Com um leve tremor, aquela manifestação física do seu ser começou a sumir, como uma visão que se apagava.

*

Quando abriu os seus olhos, estava vendo novamente a cena horrorosa de seu ataque aos incautos humanos. Teve pena da menina que provavelmente pagaria pelo seu engano – como poderia explicar os três cadáveres mutilados ao seu redor?

Mas pelo menos conseguira sair do plano material. E pelos gritos que ecoavam no mundo onírico, conseguira até mesmo um pesadelo para compensar o que perdera.

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⏰ Last updated: Sep 30, 2016 ⏰

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A história do Ladrão de SonhosWhere stories live. Discover now